‘Antes do Baile Verde’, a melhor coletânea brasileira de contos
Por Márcia Lira em
O título desse livro de Lygia Fagundes Telles é uma das melhores e mais profundas histórias, o conto Antes do Baile Verde.
Uma curiosidade é que essa coletânea teve na primeira edição dezesseis contos, depois vinte e com versão definitiva (desejo da autora) passou para dezoito. Os títulos revelam a singularidade/sutileza de cada pessoa/objeto no enredo.
Ela foi indicada este ano para o prêmio Nobel aos 92 anos, e caso ganhe (nenhum escritor brasileiro teve a honra) entrará para história da literatura brasileira, seu nome é Lygia Fagundes Telles (minha escritora preferida!). Isto seria motivo para falar do melhor romance dela: As Meninas, ganhadora do prêmio Jabuti em 1973.
No entanto, lhes apresento a melhor coletânea de contos que já li para que você adentre nas pequenas narrativas e no estilo dela com paixão e inquietude.
*Originalmente publicado em 25 de julho de 2016
Para a autora e críticos essa é a coletânea que define o seu verdadeiro estilo e a confirmação de uma exímia escritora. No entanto, não falarei de todos os contos porque daria muito assunto, mas direi dos três melhores em minha opinião de leitor.
Notei que muitos dos personagens se encontram numa solidão berrante. Os contos em geral chamam a atenção para as pequenas coisas.
Quase em todas as narrativas tem alguém fumando, e a cor verde aparece em algum momento. E de tão só e oprimidos até os objetos adquirem certa humanidade.
História
É o caso do primeiro conto Os Objetos. Impossível não se encantar com o estilo sutil e arrebatador da autora. Como se uma felina estivesse a andar silenciosamente para atacar a sua presa. Nesse caso, surpreender a nós leitores.
O narrador-observador conta a relação de Lorena e Miguel. E esse através de alguns objetos questiona/compara a si mesmo com a inutilidade ou significado das coisas para saber até onde vai ou como está a relação entre eles.
Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso… Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio. É o peso de papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, fico aquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito? (pag. 13).
Numa primeira leitura acreditei que se tratava da relação de uma mãe com seu filho, pelas atitudes “infantis” de Miguel, e o modo fraternal (quase materno) de Lorena. Mas uma segunda leitura mudou completamente minha visão sobre o porquê disso entre os dois.
Ele abria a boca, tentando cravar os dentes na bola de vidro. Mas os dentes resvalavam, produzindo o som fragmentado de pequenas castanholas.
— Cuidado, querido, você vai quebrar os dentes!
Ele rolou o globo até a face e sorriu.
— Aí eu compraria uma ponte de dentes verdes como o mar com seus peixinhos ou azuis como o céu com suas estrelas, não tinha uma história assim? Que é que era verde como o mar com seus peixinhos?
— O vestido que a princesa mandou fazer para a festa. Lentamente ele girou o globo entre os dedos, examinando a base pintalgada de cristais vermelhos e verdes.
— Como um campo de flores. Para que serve isto, Lorena?
— É um peso de papel, amor. (pag. 11-12).
Um conto em que o silêncio, a hesitação nos diálogos, as lembranças e as pequenas ações dizem mais sobre as personagens do que a explícita exposição dos seus pensamentos.
Jazz
No segundo conto escolhido, O moço do saxofone. O narrador-personagem (sem nome) é um chofer de caminhão do contrabando que vive numa pensão frege-mosca, e nos conta a história de um moço saxofonista e sua esposa vadia.
Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava. (pag. 50)
O conflito de angústia do caminhoneiro em relação à tristeza do saxofonista e a passividade do mesmo diante das relações que a mulher tinha com outros homens debaixo do próprio teto, só aumentam nossa curiosidade pelo saxofonista.
— A mulher engana ele até com o periquito […]
— O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece. (pag. 50)
O saxofonista parece ser mais um tipo de cafetão (isto não é dito na narrativa), pois não se importa muito com os homens que a mulher traz para casa (o quarto da pensão), contanto que ele possa tocar seu saxofone.
Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando o saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.
— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.
O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.
— É na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça. (pag. 54-55)
No Jazz, os músicos e suas canções sempre falam de dor, de um amor não correspondido, traições e de dores da alma; talvez o personagem veja as atitudes de sua mulher como fonte de inspiração para compor sua triste música.
— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?
— Eu toco saxofone. (pag. 54-55)
Não é a toa que o Jazz, até bem antes do final da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), já era visto como gênero musical predileto da juventude intelectualizada fomentando espaço e alimento para criação/inspiração de grandes escritores/artista.
Entre os famosos escritores Jack Kerouac, Allen Ginsberg e Júlio Cortazar. Este último tem um conto genial também sobre um saxofonista, O perseguidor, inspirado na vida de Parker.
A Rede Globo de Televisão já apresentou, em 1993, dentro da série Retratos de mulher, a adaptação do conto O moço do saxofone, num episódio chamado Era uma vez Valdete (infelizmente não achei, caso alguém ache, compartilha nos comentários, pois adoraria assistir.)
Carnaval & morte
Em Antes do baile verde, conhecemos a jovem Tatisa juntamente com sua empregada Lu, que se preparam para um baile de carnaval à fantasia em que todos devem ir com roupas verdes.
Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava biquíni e meias rendadas também verdes.
— Acabei o quê! Falta pregar tudo isso ainda, olha aí…[…]
— Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde você está parecendo uma alcachofra, tão gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito. (pag. 58)
Sempre no estilo cauteloso e sórdido, Lygia Fagundes Telles nos apresenta o dilema do conto. A vida de uma jovem em busca do prazer momentâneo para fugir da realidade da morte. Já que em um dos quartos está o pai doente.
A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a testa e baixou o tom de voz.
— Estive lá.
— E daí?
— Ele está morrendo. (pag. 59)
Tatisa é uma jovem sonhadora e egoísta, e em alguns momentos ela hesita sobre o que fazer com a solidão do pai moribundo, que disfarçara a agonia da dor para ela aproveitar o tão sonhado Baile.
— Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? […] — Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu? (pág. 61).
O conto o tempo todo nos mostra um contraste e certa perversidade da personagem. Do lado de fora da casa a alegria do rancho e o carnaval, dentro dela a tristeza e agonia perante chegada da futura morte.
— Mas você começa a dizer que ele está morrendo!
— Pois está mesmo.
— Está nada! Também espiei, ele está dormindo, ninguém morre dormindo daquele jeito.
— Então não está.
A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando de meninos brincava com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando água um na cara do outro. (pág. 61)
Os contos de Antes do Baile Verde, de Lygia Fagundes Telles, são entrada para o leitor iniciante num mundo em que a beleza dos sonhos, a violência, a perversidade e os silêncios nas relações estão presentes nas narrativas do humano.
Ler Lygia Fagundes Telles é uma maneira de encarar a loucura do homem para enxergar a verdade subterrânea das criaturas (do outro ou de nós mesmos).
Agora corra até a livraria, compre, leia e torça para que ela ganhe o Nobel de literatura este ano.
>> Leia mais um trecho desse livro em Antes do Baile
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Ficha Técnica
Antes do Baile Verde, de Lygia Fagundes Telles
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Nota: 5/5
Editora: Companhia das Letras, 2010.
Páginas: 205
ISBN: 9788535914313
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Colaboração: Wagner Bezerra Pontes
Poeta, professor de inglês, artista plástico e cineasta amador. Ainda não se acha escritor, mas rasga um tango no coração que dorme selvagem.
Encontre Wagner no Facebook e acesse o blog dele Crônicas, Contos e Poesias.
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