Resenha | Difícil escapar ao olhar íntimo de Nelson Rodrigues
Por Márcia Lira em
Colocada na boca do monsenhor Bernardo, essa é uma das frases mais representativas do que é o romance O Casamento, de Nelson Rodrigues. É uma premissa válida, na minha opinião, para intimidade em geral, a privacidade em segundo, terceiro níveis. Imagine registrar num papel cada gesto, palavra, ou, pior ainda, todos os pensamentos – até aqueles rápidos – de um ser humano. Dificilmente alguém escaparia impune.
É mais ou menos isso que Nelson Rodrigues faz.
Os personagens não poderiam ser mais triviais: um diretor de uma imobiliária, a filha com casamento marcado, a secretária submissa, a cafetina ousada, o padre conselheiro. Mas o escritor põe ao avesso cada um desses estereótipos mostrando como se encontra obscenidade numa pessoa comum. É bisbilhotando pelo buraco da fechadura, como o próprio dramaturgo define, que ele revela preconceito, adultério, assassinato, incesto, estupro, homossexualismo, e por aí vai.
Nessa minha primeira incursão na obra de Nelson Rodrigues, entendi o estilo único sempre citado quando se faz referência ao brasileiro. É desconcertante a naturalidade com que temas como esses são abordados em O Casamento. Com a propriedade de quem conheceu de perto as mazelas humanas como repórter policial do jornal carioca A Manhã, aos13 anos, o pernambucano descreve um assassinato ou uma orgia como se falasse de uma cena ocorrida num palco teatral.
“Quer morder o seio de Glorinha. Mas Antônio Carlos a empurra. Maria Inês rola para o lado. Glorinha sonha com os pés do pai, sempre de meias. Os pés de Sabino não têm cheiro.
De bruços na cama, Maria Inês morde o lençol. Glorinha abre os olhos. Vê a cara enorme de Antônio Carlos, a potência das mandíbulas. Ela deseja e tem medo. Geme.”
Se, hoje, os assuntos preferidos de Nelson Rodrigues ainda estão envoltos em tabu, é fácil imaginar o escândalo que foi a publicação de O Casamento, em 1966, em plena ditadura militar no Brasil. No final da edição, o próprio autor explica o episódio da proibição do texto pelo ministro da Justiça do governo Castello Branco, acusado “pela torpeza das cenas descritas e linguagem indecorosa”, que atentava “contra a organização da família”.
Sorte que a medida era insconstitucional, já que os livros estavam sob a proteção da lei. No dia seguinte, em sua coluna em O Globo, Nelson publicou uma resposta à censura, onde relaciona a perseguição de livros com o nazismo e finaliza dizendo que se acreditasse nessa postura do País “deixaria de ser brasileiro”.
Outra coisa interessante é que, em vários momentos, ele apresenta referências literárias por meio dos seus
personagens, geralmente leitores ávidos. A cafetina gorda e nostálgica sabe de cor O Industrial, escrito em 1884 por George Ohnet. Não consegui achar nada sobre a obra, alguém conhece? Há uma implicância com Drummond, maldito em muitos trechos, como o que Glorinha pede ao pai Sabino para não chamar mais o poeta de burro.
E o final é uma reviravolta nonsense, sequelante.
Enfim, uma delícia. Ótima indicação das amigas. Se você já leu, concorda? Discorda? Acrescenta?
A 1ª foto é minha. A segunda, do Flickr de Tiffany Nicholson.
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