Basta dar uma trela, que Tudo é Rio leva você na correnteza
Por Márcia Lira em
Com Tudo é Rio, eu senti. O livro de Carla Madeira fez isso por mim, desbloqueou um pouco o sentir, esse que a gente vai deixando pra depois diante de tantos afazeres. Ao contar a história de um triângulo amoroso – um homem, uma mulher e outra mulher, uma prostituta -, a autora leva a gente a mergulhar profundo nas emoções, mas com poesia. É uma coisa linda. Facinho a gente entende porque o livro da escritora mineira ficou entre os 10 mais vendidos da Amazon no mundo em 2023, sendo ela a única brasileira da lista.
Acredito que um dos motivos desta façanha é que basta a pessoa dar a oportunidade ao livro: ler a primeira página é como colocar a canoa no rio e entrar na correnteza. Você é logo apresentada a Lucy, que é a prostituta mais orgulhosa de ser prostituta do mundo. Vemos seu reinado ficar ameaçado quando ela decide que quer Venâncio, justamente o único que não a cobiça. Ele é casado com Dalva, com quem vive em solidão de silêncio e afeto, causado por um acontecimento trágico.
Depois disso, fica difícil contar mais porque a surpresa sobre o que acontece no livro é um dos charmes da leitura. Mas destacaria dois temas principais, um é a violência doméstica, o outro é o amor nas relações humanas. O amor de marido e mulher, o da maternidade, o amor não-correspondido, o amor de mãe e a ausência dele. Eu me senti sugada pra história desses personagens, e ao decorrer da leitura, tive angústia, excitação, chorei, fiquei triste, tive raiva da humanidade, senti empatia, refleti sobre a vida, sobre as minhas relações e fui surpreendida e atravessada o tempo inteiro.
Dolorido e poético
Na Festa Internacional Literária de Paraty, FLIP 2024, tive o prazer de assistir a uma mesa da Casa Record com a Carla Madeira, em que ela mesma explica que o peso do que acontece em Tudo é Rio fica mais palatável por conta da poesia. É verdade. É tanta que o livro é quase completamente grifável. Tanto que a escritora comentou na palestra que fez o exercício de buscar na sua segunda obra, A Natureza da Mordida, a leveza de outro lugar: no humor.
Mas voltando à obra de estreia de Carla Madeira, a beleza das frases fazem a gente se conectar com a história e só perceber quão forte foi essa conexão quando brota o choro. Aliás, você já viu a série This is Us, da Amazon Prime? Agora me veio à cabeça que Ler Tudo é Rio e assistir This is Us sem chorar é impossível.
Essa mistura de história interessante e cheia de reviravoltas com a narrativa embelezada faz Tudo é Rio ser um livro fácil de ler. É a pegada de um thriler policial: você vai sendo seduzido a ler mais, a continuar, a saber o que aconteceu depois. Ou antes. Porque a narrativa apresenta os três como estão hoje, mas com o caminhar dos capítulos, a escritora vai revelando o passado de cada um, modo flashback pra gente ir entendendo como chegamos à situação de agora.
Espero que eu esteja conseguindo me fazer entender, mas na dúvida, vou pedir ajuda com essa definição cirúrgica:
Violência doméstica
Um episódio de violência doméstica no início do livro define toda a trama. O assunto é esmiuçado de dentro de um casamento para fora. Desde o crime e suas consequências imediatas, até a forma como isso impacta tudo ao redor é explorado em suas várias camadas. Mas Carla Madeira não nos coloca com uma visão aérea e distante da coisa, a gente acompanha a história ao lado da personagem, no desconforto, tão junto que é até difícil saber o que pensar.
O que quero dizer é que levando em conta que no Brasil, duas a cada dez mulheres já sofreram ameaça de morte de parceiros atuais ou ex-parceiros românticos (dados do Instituto Patrícia Galvão e da empresa Consulting do Brasil, divulgados neste novembro de 2024), essa abordagem por si só já vale a leitura. Posso dizer que nunca algo tinha me feito sentir a dor de quem sofre deste tipo de violência de uma forma tão palpável.
Por outro lado, ao abordar um tema tão forte, uma ferida aberta no nosso país, que é a misoginia e a violência dentro de casa, a escolha de Carla Madeira para o final de Tudo é Rio levantou críticas sobre uma possível romantização da violência doméstica. Sim, é um ponto de vista. Mas na minha opinião, o livro coloca tão bem posto o processo e a dor de quem sofre esse tipo de crime, que as escolhas das personagens da história de Dalva, Venâncio e de Lucy são mais retrato da realidade do que gostaríamos. Literatura é provocação, e pense numa coisa que esse livro faz!
Agora a própria escritora respondeu essa crítica no programa Roda Viva, numa fala muito interessante de ver. Porém, contém spoilers demais. Então recomendo você assistir depois de ler o livro.
Virou hype na estreia
Foi mais um livro que me fez pagar a língua. Todo mundo lendo, todo mundo elogiando e eu apenas não aderindo ao hype. Até que no final de 2023, fui passar réveillon com algumas das minhas melhores amigas num camping, e lá entre árvores e corredeiras, elas não paravam de falar do livro. Estavam impactadas, queriam debater, “o que é aquilo que tinha acontecido na história?”, “Que virada!”.
Eis que quando comecei a ler, logo no primeiro capítulo, fiquei impressionada! Que história é essa, minha gente? E o final, o final eu nem sei dizer. Na verdade, é como se esse livro tivesse vários finais, de tanta reviravolta que tem. Você acha que entendeu o fio da meada, e o curso do rio muda.
Essa abordagem de tragédias humanas, como se a gente tivesse no mesmo cômodo com o personagem, próximo demais, naquela agonia de sentir os impactos dos acontecimentos, me lembrou muito Crime e Castigo, do russo Dostoiévski, leitura que finalizei também neste ano. Já a mistura de sordidez dos fatos com a poética das palavras me remeteu muito a O Peso do Pássaro Morto, da Aline Bei.
Carla Madeira é jornalista e publicitária, e demorou 14 anos escrevendo Tudo é Rio, e a conclusão é de que valeu a pena, uma estreia arrebatadora. Em 2024, Tudo é Rio ganhou o Prêmio Bertrand em 2024 como livro do ano. Depois, ela lançou A Natureza da Mordida e Véspera, e disse na FLIP que está no processo de escrita do quarto livro.
Se você procura uma história que lhe capture, que tenha amor, tragédia, saliência e mais uma salada de sentimentos e problematizações, com uma forma deliciosa de ler, esse livro é pra você. Quero que todo mundo leia, acho que Tudo é Rio pode fazer mulheres e homens um pouco melhores.
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