Tempo Bom e o prazer em conhecer os novos
Por Márcia Lira em
Uma das melhores coisas de ler Tempo Bom foi conhecer autores que poderiam ter passado despercebidos por mim. Fato que só aumenta o valor dessa coletânea que já nasceu cheia de dignidade. Com contos gentilmente cedidos pelos escritores e processo editorial feito na camaradagem, o livro foi lançado e vendido com renda revertida para as vítimas das enchentes em Pernambuco.
Alguns dos integrantes eu sabia que deveria conhecer, e em outros eu realmente não tinha ouvido falar. Engraçado que a coletânea conta com histórias de Xico Sá, Fernando Monteiro, Raimundo Carrero, Alberto Mussa, Marcelino Freire, mas foi mesmo nos nomes menos famosos que eu me deleitei. Sendo menos famosos, claro, um conceito muito particular, pois um deles já foi finalista na categoria “autor estreante” no Prêmio São Paulo de Literatura, em 2009: Rinaldo de Fernandes. Autor de vários livros, ele escreveu O Cavalo, um dos contos que mais me chamou a atenção.
Um dos motivos é a afinidade com o ponto de vista do narrador, que exerce o voyeurismo do alto de um apartamento. Eu, depois de toda uma vida de casa, há pouco passei a morar no nono andar, e tenho achado impressionante a facilidade que é observar as pessoas na rua sem elas se darem conta. O conto tem uma briga de casal com um cavalo no meio, numa dose interessante de estilo e elementos fantásticos.
Outro interessante é Ernest, do baiano Gustavo Rios. Em meio a todos os clichês de uma festa de família, um sujeito velho e amargo desfila suas insatisfações e lembranças sexuais reavivadas por um copo de whisky:
“Tinha certeza que o sol derretido, o mar distante, afinal, morava num desses conjuntos habitacionais, austeros, onde se socam famílias inteiras em caixas de concreto, de janelas minúsculas, de telhados incertos, de ruas largas com poucas árvores, pois esse lugar lhe trazia o medo de estar morto sem saber”.
Legal é ler na sequência dois textos de Ronaldo Correia de Brito originalmente publicados em livros diferentes: Faca e O que veio de longe. Os dois são relacionados, um gira em torno de um crime e o outro, de um corpo. Ambos me cederam uma boa dose de humanidade (como falei aqui) para fatos que, infelizmente, podem ser encontrados nos jornais todos os dias.
“Os peixes devoraram o rosto, apagando os sinais que o tempo depura, em repetidas heranças. Três buracos no peito esquerdo indicavam a passagem de balas. Ninguém sabia quem era. A única certeza é que vinha das cabeceiras do rio, arrastado mundo abaixo à procura de mar.”
Sabe quando a leitura parece uma conversa com o leitor? Carlos Crocó, de Marco Polo Guimarães, é assim. Bom conhecer também os dois contos de Cristhiano Aguiar. Água Viva, o último encontro entre um neto e um avô de “alma torcida”. E em Medeia, uma atriz que descobre estar grávida circula entre o palco e a dura realidade. Destacaria ainda os já citados contos de Felipe Arruda e de Sidney Rocha. Gritos ocultosé divertidíssimo, onde o paulista Nelson de Oliveira descreve não apenas os diálogos mas os pensamentos dos personagens (ainda bem que a vida não é assim!):
“Oi. Senta aí. Quer um café? (Meu Deus, como ele emagreceu. Será que tá doente? Ele tá abatido. É essa maldita vida de artista. Não… Será que é aids? Ah, não.)
Quero. (Eu devia ter inventado uma história qualquer. Justo hoje tinha que chover. Mas a cara dele até que tá bastante boa. Então não deve ser nada sério. Nada muito dramático. Detesto drama. A moça do balcão até que é bem gostosinha.)”
Foto de Eduardo Amorim
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