‘Simpatia pelo Demônio’ é história sobre relacionamentos e obssessão
Por Bianca Dias em
No horóscopo chinês, 2017 pode ser o ano do Galo. Na literatura, entretanto, 2017 começou como o ano do Rato. Iniciando as leituras após o Ano Novo, deparei-me, inadvertidamente, com dois Ratos distintos.
Comecei pelo Rato protagonista do romance de Bernardo Carvalho, Simpatia pelo Demônio. Logo em seguida, o Rato de Murakami esteve presente em Ouça a canção do vento e Pinball, 1973, dois romances reunidos em volume único, e de estética primorosa, pela editora Alfaguara.
Em Simpatia pelo Demônio, antes de começar a história propriamente dita, Bernardo Carvalho faz por bem esclarecer o título da obra, desvinculando-o da clássica canção dos Rolling Stones.
De modo professoral, explica as distinções linguísticas entre simpathy e simpatia, ressaltando que o primeiro, em inglês, quer dizer consideração. No título deste romance, a simpatia pelo demônio é simpatia mesmo.
O primeiro capítulo do livro é mesmerizante
A narrativa tem vida própria, no sentido de que bem poderia estar fora do romance, de modo autônomo, e, ainda assim, continuaria a ser admirável, completa.
O Rato de Bernardo Carvalho trabalha em uma agência humanitária, e se vê enredado em uma missão cheia de meandros não ditos e desditos.
Mesmo sem saber ainda o que causou a derrocada do Rato (a qual é referida desde logo), a intricada trama e o seu desenrolar no primeiro capítulo levam o leitor a perder o fôlego.
Consequência da incumbência misteriosa e enevoada designada ao protagonista – a qual envolve interesses escusos, sequestro, resgate, anonimato, países em guerra, grupos terroristas, guerrilhas rivais, Oriente Médio (?).
A tensão criada segue se elevando, e a curiosidade de quem lê é atiçada pela progressão que o drama psicológico da situação vai desenvolvendo.
Relacionamento obssessivo
À medida que o romance avança, chega-se ao triângulo amoroso em que se envolveu o Rato (mencionado na orelha do livro), que se apaixona pelo chihuahua, casado com o Palhaço.
Bernardo Carvalho explicou, em várias entrevistas, o porquê da nomenclatura dos personagens e de sua grafia, ficando aqui a referência a duas boas conversas com o autor no Suplemento Pernambuco e no Rascunho.
A partir de então, a vida do protagonista sofre reviravoltas decorrentes de um relacionamento obsessivo, no qual o desejo irrefreável aniquila, subjetivamente, a autoestima, o amor próprio, o senso de ridículo; e, objetivamente, a carreira e o casamento do protagonista.
Menos importante do que já se saber o que acontece é acompanhar o enredo para entender como tudo acontece: o que leva alguém como o Rato, um homem de meia idade, profissional consolidado e componente de uma família estável (esposa, uma filha), a se transformar em presa fácil do chihuahua, a ponto de representar a efígie da cobaia e justificar a alcunha de Rato, com R maiúsculo.
Tramas dentro da trama
Desenvolve-se um bem urdido o jogo de caça e caçador, em que o chihuauha é o gato, e o rato é, inescapavelmente, o próprio Rato. Sadismo e masoquismo permeiam a violência psicológica à qual o chihuahua submete o Rato; e à qual, em determinado momento, ele parece se subordinar de bom grado.
Os apaixonados acreditam em qualquer coisa, até mesmo que estão livres da paixão. Não é preciso ser nenhum neurologista ou neurocientista para saber que o amor romântico, como as drogas, é capaz de fazer com que gente inteligente cometa os atos mais estúpidos. E, como se não bastasse, há ainda quem tenha o dom sinistro de corresponder ao desejo dos outros, levando a vítima apaixonada a crer nas coisas mais implausíveis (…)”
Um dos grandes trunfos de Simpatia pelo Demônio são as muito bem urdidas tramas dentro da trama. Sem se desviar da história central, algumas passagens merecem apreciação própria, a exemplo do monólogo escrito e encenado pelo Palhaço (que é ator), no qual ele se descobre a reencarnação de Adolf Hitler.
Também sobre o Palhaço, ainda que não se possa averiguar a veracidade da informação, sua suposta participação no Festival Internacional de Mulheres Palhaças ressalta a bem engendrada construção do personagem, superando o chihuahua em profundidade, em vários trechos.
Túnel descendente
Isso porque, sem prejuízo da indiscutível importância do chihuahua para a história, e restando claro que é parte da sua personalidade infantil agir de modo imaturo, jogando com as suas vítimas, esta infantilidade chega a ser levemente enfadonha em certas passagens.
As artimanhas de que se vale parecem, em alguns momentos, pueris – ao menos na visão de quem não se encontra embotado pelo desejo obsessivo, insano, e que pode se questionar como alguém levaria tão longe uma relação permeada por truques rasos.
Talvez para questionar a verossimilhança de tais artifícios, seja preciso estar tomado pelo mesmo sentimento descontrolado que se apossou do Rato.
A parte final do livro guarda guinadas surpreendentes, a principal delas resultando, de modo crível e hipnotizante, do extremo a que o Rato é levado.
Fecha-se o círculo, mas não se trata da roda que o roedor girou, sem sair do lugar – o Rato de Bernardo Carvalho cavou um túnel descendente, cada vez mais fundo, sem possibilidade de subida.
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