Complexo e intenso, A Vegetariana é uma façanha de livro
Por Márcia Lira em
Quem olha para o livro A Vegetariana, de Han Kang, e vê apenas uma militância contra o consumo de carne animal não sabe o quanto está perdendo. Os debates que o livro trazem são muito mais amplos e eu posso provar. Lançada em 2007, a obra rendeu à escritora sul-coreana o prêmio Man Booker Prize, e foi publicada no Brasil pela editora Todavia.
“Nunca tinha ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano”, assim começa o livro na voz do marido de Yeonghye. Um dia ele a encontra atormentada por pesadelos na madrugada, como uma estátua de olhos frios e distante em frente à geladeira, e horas depois ela está jogando toda a carne da casa no saco de lixo.
“Já não consigo dormir mais que cinco minutos. Assim que caio no sono começo a sonhar. Não: nem sequer posso chamar isso de sonho. Não passam de cenas curtas que me assaltam de forma intermitente. Olhos ferozes de algum animal. Olhos que parecem ter nascido de minhas entranhas. Quando desperto, tremendo, verifico minhas mãos, pra ver se as unhas estão normais, se meus dentes estão inteiros.”
O impacto da mudança brusca e determinada de Yeonghye na vida das pessoas mais próximas é avassalador. No primeiro capítulo, o marido conta como parou de reconhecer a mulher com quem partilhava a casa. A questão feminina se destaca. De uma moça mediana, como ele mesmo descreve, capaz de cumprir bem suas funções, a personagem central se torna uma mulher firme e inacessível em sua decisão, inclusive se liberando de todos os papeis do casamento.
A família de Yeonghye, formada por pai autoritário e mãe subserviente, não aceita a decisão. Um dos pontos marcantes do livro é um almoço de domingo cheio de conflitos e acontecimentos que deixam os personagens estraçalhados e as cenas fortes na cabeça do leitor.
Família e loucura
No segundo capítulo, quem conta a história é o cunhado da vegetariana. Um artista frustrado que começa a enxergar na inquietação de Yeonghye um material de criação artística. Aqui Han Kang aborda a sexualidade em suas mil facetas, animais e psicológicas, e eu nunca tinha lido na literatura uma abordagem tão complexa num ritmo de tirar o fôlego.
“A filmagem tinha ficado melhor do que esperava. A luz, a atmosfera e os movimentos de Yeonghye emanavam um magnetismo de perder o fôlego. Pensou por um momento que música de fundo deveria colocar, mas logo concluiu que o silêncio do vazio ficava melhor. Os movimentos suaves do corpo, a mancha mongólica e as flores que enchiam a pele nua harmonizavam-se como algo essencial e eterno.”
E no último capítulo acompanhamos a saga da irmã de Yeonghye. Pela visão dela, entendemos traumas familiares que talvez tenham levado a vegetariana a chegar onde chegou. Pistas meio apagadas no caminho para entender algumas das suas ações, que ora julgamos infantis, ora cruéis, ora perturbadas.
Como o funcionamento da sociedade hoje é capaz de causar distúrbios psicológicos? O quanto traumas familiares podem influenciar? Como é possível cuidar de alguém cuja saúde mental não existe mais? São perguntas que nos fazemos na reta final da leitura de A Vegetariana.
Então como você pode ver, a decisão de não comer carne não é o principal aqui. Obviamente, é possível ler sob essa ótica e encontrar muitas metáforas. Mas a meu ver, Han Kang escolhe o vegetarianismo para mostrar o cenário destrutivo, para todos os lados, que ainda se forma quando uma mulher desafia a sociedade.
Uma façanha
Vale destacar que tem duas coisas muito intrigantes no livro. A primeira é que terminamos a obra sem conhecer o ponto de vista da personagem principal. O que Yeonghye pensava? Han Kang não dá voz a ela, tudo que sabemos é pelos outros.
A segunda coisa, inacreditável, é como a escritora consegue criar uma obra capaz de prender o leitor num ritmo de leitura acelerado e aprofundar temas tão complexos em apenas 170 páginas. Esse livro é uma façanha!
Cavei aqui da memória alguma outra obra com a qual pudesse comparar e o que me veio à cabeça foi O Retrato de Dorian Gray, do Oscar Wilde, por causa dos conflitos internos pelos quais o personagem passa em meio à valorização da beleza pela sociedade. Ora, vemos vilania, ora vemos uma vítima. E tem um pouco disso na obra da sul-coreana.
“Depois de rir por alguns minutos, pensava que a vida era estranha. As pessoas comiam, bebiam, tomavam banho e seguiam vivendo mesmo depois de passar por acontecimentos terríveis. Às vezes chegava a rir alto.”
Então como é possível imaginar, A Vegetariana, se tornou um dos meus livros favoritos. Eu recomendo a leitura, principalmente para quem gosta de narrativas psicológicas.
Agora o alerta é: se você não está bem, se a sua saúde mental está abalada, aqui podem ter alguns gatilhos que não vão fazer bem. Fica a atenção! No mais, para quem quer retomar um ritmo de leitura, mas sem ler algo raso, quer se sentir mexida ou mexido, esse romance é perfeito.
ATUALIZAÇÃO EM 06 DE NOVEMBRO DE 2024
Com esta obra, a escritora foi a primeira sul-coreana a receber o Prêmio Nobel de Literatura em 2024. Um arraso!
3 comentários
AUTOR
Márcia Lira
Márcia Lira. Jornalista. Social Media. Especialização em Jornalismo Cultural. Fundadora do Menos1naestante há 14 anos. E-mail: marcialira@gmail.com.
Muito bom amei demais sua resenha do Livro A Vegetariana da Autora Koreana Han Kang
Muito bom mesmo
Eu comprei
Estou bem ansioso pela leitura do Livro
Eu Recomendo
Eu já Li O Livro O Retrato de Dorian Gray
do Autor Oscar Wilde
Parabéns Márcia Lira!
Adorei seu texto, gostoso e leve.
Ah! Eu conheço muitas famílias amorosos repletas de sorrisos, que cantam e dançam fazendo oficinas de churrasco. O tempero é o encontro e a família por perto. Abraceijos e Luz Divina !!