Frankenstein: mais do que um terror, um livro sobre humanidade
Por Márcia Lira em
Quando você ler o clássico Frankenstein ou O Prometeu Moderno, da Mary Shelley pode deixar de lado tudo o que você tem na cabeça sobre essa narrativa.
Para mim, esse é o maior exemplo de como uma história contada mil vezes pode virar outra coisa completamente diferente.
Sabe o monstro verde criado em laboratório numa masmorra por um cientista louco?
Aquele que tem feições angulares e cabelo escuro, com um parafuso no pescoço e um andar débil e desengonçado? Esqueça.
Essa figura do monstro que a cultura pop implantou na nossa cabeça é algo meio distante da saga original criada pela Mary Shelley, no início do século XIX.
Continue lendo esta resenha que vou explicar por que vale a pena ler este livro, e descobrir a história que você ouviu mas não conhece.
Em meio a descobertas científicas, o enredo
Para mim, o primeiro grande impacto foi perceber que Frankenstein é o sobrenome do dr. Victor, o criador do monstro. E não do monstro.
A criatura, como muitas vezes é chamada no livro, não tem nome. Na verdade, não alcançou sequer a dignidade de ter um nome.
Mas vamos ao começo. Dr. Victor Frankenstein é um cientista jovem e vaidoso animado com as recentes descobertas da ciência, que se aprofunda em estudos sobre reanimação de mortos.
(Entre as novidades científicas da época, temos a aplicação da corrente elétrica, descoberta por Benjamin Franklin, os estudos sobre a evolução do avô de Charles Darwin, Erasmus.
Além disso, os avanços de Galvani sobre a animação da matéria com eletricidade. Estudos que dariam suporte, mais tarde, para a invenção da bateria elétrica).
Quem poderá conceber os horrores de minha labuta secreta enquanto estava imerso na profana umidade da tumba ou torturava um animal vivo para animar o barro inanimado? Meus membros agora tremem e meus olhos transbordam com as lembranças, mas então um impulso irresisitível e quase desvairo lançou-me adiante.
Frankenstein, de Mary Shelley
Então à medida que suas pesquisas avançam, o cientista suíço se afasta da vida social, numa obssessão por conceber um ser vivo a partir de pedaços de corpos humanos.
Enfim ele comsegue! Materializa vivo em seu laboratório um monstro gigante e horrendo.
O que fazer? Quem é esse ser? O que ele quer e como pretende viver? De que ele precisa? Que perigos oferece?
São questões que deveriam ter sido feitas antes do experimento. Mas diante da sua criação, a reação do dr. Victor é de horror e fuga.
– Mary Shelley, em FrankensteinEra, ademais, dotado de uma figura abominavelmente deformada e detestável. (…) Quando olhava ao redor, não via ou ouvia ninguém como eu. Será que, então, era um monstro, uma nódoa na face da Terra, da qual os homens corriam e a quem todos repudiavam?
A trajetória de uma criatura à margem
De cara, questionamos a irresponsabilidade do dr. Victor ao colocar no mundo o resultado bizarro dos seus experimentos.
Mas quando a autora nos dá a ótica do monstro é que enxergamos um ser vivo lançado à escuridão, sem orientação e nem afeto.
Uma criatura poderosa e assustadora fadada a viver com a completa rejeição do seu criador, e também da sociedade que não vai além de sua aparência.
Diante dessas circunstâncias, que chances tem alguém de se tornar do bem?
Depois piora um pouco quando percebemos que a criatura de Mary Shelley não é acéfala e ignorante.
Em sua solidão, começa um mergulho na literatura para aprender sobre a humanidade.
São livros como Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, O Paraíso Perdido, poema de John Milton, Vidas Paralelas, de Plutarco, que dão a base de intelectualidade para o monstro.
Essas narrativas maravilhosas inspiraram-me sentimentos estranhos, seria o homem ao mesmo tempo, de fato, tão poderoso, virtuoso e magnífico e, no entanto, tão vicioso e desprezível?”
Mary Shelley, em Frankenstein
As leituras despertam sua curiosidade para o amor e outros sentimentos, que dificilmente ele vai experimentar.
O transformam num ser culto e educado, outra grande surpresa para mim. E a partir desse cenário a narrativa se desenvolve.
Frankenstein é um livro de terror?
A semente de Frankentein ou O Prometeu Moderno nasceu na cabeça da Mary Shelley em uma reunião de amigos intelectuais para contar histórias de terror, numa noite de 1816.
Estremeci, e meu coração desfaleceu quando, ao olhar pra cima, vi à luz do luar, o demônio na janela. Ostentava em seus lábios um medonho riso de esgar e olhava fixamente pra mim, que estava sentado cumprindo a tarefa que me impusera.
Mary Shelley, em Frankenstein
O episódio que trouxe a centelha criativa do romance é contado na introdução original do livro, pela própria escritora.
Vizinhos jovens que se encontravam para debater descobertas científicas e filosofia decidiram se desafiar a escrever histórias de terror.
Não simples vizinhos, mas nomes como os poetas Lord Byron e Percy Shelley (seu marido), além de John Polidori (escritor inglês que criou O Vampiro) e Claire Clairmont, sua meia-irmã.
Ao recordar aquela noite, numa casa elegante às margens do lago Genebra, a autora diz que começou a:
(…) pensar uma história – (…) Uma que falasse aos medos misteriosos de nossa natureza e despertasse um horror eletrizante – uma história que fizesse o leitor olhar ao redor apavorado , que fizesse o sangue gelar e acelerasse o pulsar do coração. Caso não conseguisse fazê-lo, minha história de terror não seria digna desse nome.
Mary Shelley, em Frankenstein
Sim, é uma história com momentos assustadores.
A trama mantém no ar um suspense, a gente fica esperando o que vai acontecer.
Não da forma que conhecemos hoje, com rapidez, no ritmo de thriller. Afinal, é um clássico publicado originalmente em 1818.
Mas um suspense com aquela escrita em ritmo lento, de um tempo que passava mais devagar.
No entanto para mim aqui em 2020, Frankenstein é mais um livro sobre solidão e humanidade (ou a falta dela), do que propriamente de terror.
O que nos faz humanos? O que nos torna monstros? Como os preconceitos com as aparências podem nos tornar tão cruéis?
É sublime como Mary Shelley consegue, com uma história fantástica ocorrida num período distante, fazer com que a gente aqui no século XXI questione as nossas atitudes hoje.
Um livro para viajar
O livro traz uma coisa que eu acho muito gostosa nos romances mais antigos que é o culto à natureza, a descrição das paisagens.
Mas numa medida agradável, sem passar páginas em descrições detalhistas.
É o suficiente para você sair da sala e se imaginar ali nas florestas de Genebra, na Suíça, ou nas regiões selvagens da Tartária e Rússia, ou nas geleiras da Antártida.
Aliás, a dica é viajar um pouco com a trama procurando imagens dos lugares no Instagram (como ensinei aqui nesse post). Como muitas são paisagens naturais, elas estão lá ainda para você visualizar ainda mais a história.
Mary Shelley, um capítulo à parte
O livro Frankesntein por si só é uma grande leitura, entrou sem freios para a categoria dos meus melhores livros da vida. Mas quando você conhece a história da autora, o brilho fica ainda maior.
Mary Wollstonecraft Godwin (1797-1851) nasceu em Londres, filha do filósofo político William Godwin e da teórica feminista Mary Wollstonecraft.
Sua mãe faleceu dez dias após o parto, a primeira tragédia da escritora.
Crescida em meio à intelectualidade londrina, a escritora ainda adolescente se torna Shelley depois do casamento com o poeta Percy Shelley.
Com ele, foge do pai – que não aprova o relacionamento – levando a meia-irmã.
Vivendo com privações, o casal tem quatro filhos, mas três morrem ainda na infância (o mais velho tinha pouco mais de três anos).
Antes que possa se recuperar da dor materna de perde os filhos, a escritora precisa encarar o suicídio da meia-irmã Fanny Imlay. O mesmo acontece com a primeira esposa de Percy.
Entendemos como este cenário de abandono, dores e frustrações foi transformado por Mary Shelley em Frankenstein ou O Prometeu Moderno, quando ela tinha apenas 21 anos.
Mas nem como escritora, Mary viveu só de glórias.
A condição da mulher na época fez com que a primeira edição do livro escondesse sua autoria e tivesse uma introdução escrita por Percy Shelley, o que dava a entender que a obra era dele.
A injustiça foi corrigida na segunda edição, mas as agruras não pararam na vida da autora.
Mary perde o marido antes dele completar 30 anos. Numa viagem de veleiro, a embarcação é atingida por uma tempestade e Percy Shelley se afoga no mar.
É por isso que na edição da Darkside que li, lançada em 2017, o crítico Carlos Primati escreve que “uma série de tragédias pessoais na vida de Mary Shelley pode ter influenciado sua obssessão por temas como imortalidade e criação de vida artificial”.
São temas que continuam sendo abordados em outras obras como na ficção científica O Ultimo Homem (1816), onde a autora conta uma história pós-apocalíptica ambientada no século XIX. Fiquei super curiosa pra ler.
São várias as teorias que interpretam Frankenstein, e uma em especial vê a obra como uma analogia à condição da mulher na época.
A mulher, um ser com um papel limitado e à margem dos grandes feitos da sociedade (sobre esse caminho, gostei muito deste artigo do Jornal Opção).
Ou seja, leia Frankenstein
Enfim, quero dizer que não importa o quanto você acha que conhece a história de Frankenstein ou O Prometeu Moderno, o mais provável é que você tenha uma experiência nova ao ler este livro.
Aposto que é uma obra que agrada diversos tipos de leitores por misturar uma saga de época, com romance, ficção científica, terror e dramas pessoais.
Deixo aqui um agradecimento especial à amiga que me deu esse livro de presente depois de se apaixonar por ele, Thaisoca. <3
O filme sobre Mary Shelley
Existem inúmeras adaptações para o cinema do primeiro livro de ficção científica Frankenstein.
Dizem que umas são mais fieis ao livro, outras muito pouco, e eu confesso que ainda não explorei as opções.
Mas recomendo demais o filme Mary Shelley (2018), uma cinebiografia da escritora estrelada por Elle Fanning (assista ao trailler aqui).
Antes ou depois da leitura, é um filme que dá uma noção pra gente da época em que o clássico foi escrito, da condição feminina, das tragédias da vida da autora, da relação dela com Percy Shelley.
Tem até a cena da famigerada noite em que Mary Shelley começou a conceber Frankenstein. <3
Como ela era novinha quando publicou o livro! Quanta dor foi necessária para que hoje, séculos depois, a gente possa se dar ao luxo de apreciar esta obra.
O filme acaba sendo um jeito fácil de se situar no universo de quem deu luz à criatura.
Espero que você tenha gostado. Se você já leu este livro, o que achou?
—
Frankenstein ou O Prometeu Moderno
Mary Shelley
(veja na Amazon: https://amzn.to/2W3NJ1W)
Editora: Darkside (Tradução de Márcia Xavier de Brito)
Páginas: 304
ISBN: 8594540183
Nota: 5/5
Um livro para: refletir sobre solidão e viajar para a Suíça
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AUTOR
Márcia Lira
Márcia Lira. Jornalista. Social Media. Especialização em Jornalismo Cultural. Fundadora do Menos1naestante há 14 anos. E-mail: marcialira@gmail.com.
[…] Leia mais sobre aqui: http://menos1naestante.com/frankenstein-mary-shelley/ […]
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[…] e dramas pessoais. Mas o filme é bem bom, não faz feio, serve como uma ótima introdução à leitura do clássico Frankenstein – O prometeu moderno, que vale a pena demais. Disponível na […]