
Saí de O Buraco da Agulha, de Ken Follet, não só mais entretida: mais inteligente também
Por Márcia Lira em
Não sei você, mas se tem uma coisa que me realiza num livro é ser conduzida por entre as ruelas de uma história que intriga, que bota perguntas na cabeça e dá um motivo pra se sentir pequena diante do mundo. E se o livro fizer isso e ainda me ensinar algo que eu poderia ter passado na vida sem saber, como um fato histórico, aí é a sétima maravilha. E foi justamente o que aconteceu na leitura de O Buraco da Agulha, do Ken Follet.
O danado é ser o romance de estreia do autor britânico. Foi lançado lá em 1979, e hoje o escritor é um best-seller dos thrillers e romances históricos. Com a exceção de um clima noir, característico dos anos 70, o livro tem uma linguagem limpa e poderia ter sido escrito nos anos 2020. A gente começa sendo situado numa vida rotineira nos subúrbios de Londres, onde Henry Faber, com seus 39 anos mora numa pensão.
Um sujeito trabalhador, bonito e reservado. Aspectos que fazem a viúva dona do lugar decidir que pode ser uma boa se engraçar pro lado dele. Numa noite, algumas taças de vinho dão a ela a coragem de apanhar a sua chave mestra e ir bater na porta do quarto de Henry Faber. Ele está dentro mas não responde. Ela usa a chave e abre a porta. Ao ser surpreendido mexendo numa espécie de rádio amador, ele levanta, troca um cumprimento e a enlaça num beijo, o último beijo que ela ganha, pouco antes de uma facada.

O autor Ken Follet. Foto: Gareth Iwan Jones
E assim, nas primeiras 20 páginas, Ken Follet lhe capturou, como se faz com um cachorrinho quando se tem um petisco na mão. Na narrativa, estamos em 1944, e está rolando a Segunda Guerra Mundial. Faber é, na verdade, um espião nascido na Alemanha, disfarçado na Inglaterra para executar missões para o exército de Hitler.
Abro um parêntesis aqui pra falar da mágica que é a literatura ao me permitir observar um fato histórico por um ângulo ao qual eu nunca teria acesso de outra forma. Quais as chances de eu encontrar um espião alemão vivo, parceiro de Hitler, e ter acesso à sua visão das coisas do que aconteceu naquela época? Pensando bem, acho que eu nem queria.
No segundo capítulo, o autor apresenta pra gente o professor Godliman, um historiador renomado, que é convocado para voltar a ajudar as autoridades nas estratégias de guerra na Inglaterra. E quando muda o capítulo, somos apresentados a Lucy, no dia do seu casamento com David numa igreja rural. Eles são só sorrisos e desejo, mas a cerimônia tem tons de apreensão porque David é piloto de guerra do Reino Unido e vai sair em menos de dois dias para uma missão bélica. A lua de mel é urgente, mas durante a viagem pela estrada, um acidente de carro muda o curso de tudo.

Os personagens principais da trama são assim apresentados. Em capítulos alternados pela visão de Faber, Godliman e Lucy, a gente vai montando o mapa completo da história. Personagens que parecem andar aleatórios e paralelos por muitas páginas acabam se cruzando mais pra frente de uma forma impossível de se prever. Quando o encontro é iminente, você já criou uma relação com cada um, de afeição, de ressalva, de pena, tendo empatia, entendendo de onde vieram, seus sonhos, seus dramas e aspirações. Então de repente quando todos se alinham na trama, fica tudo mais apetitoso.
O Exército Fantasma
Saboroso como um bom prato de nhoque com molho gorgonzola, esse livro me fez ter vontade de fazer uma maratona Ken Follet. Tanto pela construção das personagens, quanto pelo jeito de contar a história, situando a gente em percepções políticas e sociais da época sem a gente nem perceber. Mas nada, nadinha supera o fato histórico que sustenta a narrativa.
Faber recebe a missão de verificar a força de um exército gigantesco norte-americano, nação aliada, alocado na Inglaterra. A Alemanha já tinha interceptado mensagens de rádio trocadas por eles, aviões de reconhecimento tinham fotografado os alojamentos. Confirmações dessa ameaça que tinha, supostamente, como objetivo barrar a entrada alemã no Reino Unido. Já tinham sido enviados espiões, mas Henry Faber era o melhor e Hitler confiava nele.

O que ele descobre é infame. Se tratava de um exército totalmente fake. Os tanques de guerra eram de papelão, os alojamentos estavam vazios, tudo montado para causar a impressão de volume e grandiosidade frente à vista aérea dos aviões alemães. Os soldados eram poucos, mas milimetricamente organizados para parecer um exército inteiro. Pense em grupos de soldados pequenos, que se alternavam em visitas aos povoados próximos à área para manter a cena. Um dia com um tipo de farda, outro dia o mesmo grupo em outro lugar com outra vestimenta.

Foto: Wikipédia
Tudo uma grande estratégia de marketing para fazer os alemães perderem tempo, dinheiro, energia e investidas contra algo sem consistência. Enquanto isso, os norte-americanos planejavam um ataque ao país por outra via. No livro, Faber fotografa essa fake news bélica, e fazer essas fotos com a comprovação chegarem a Hitler passa a ser sua maior missão de vida.
Uma jogada de marketing

Fiquei intrigada com a artimanha e fui pesquisar. Descobri que isso realmente aconteceu. Uma unidade secreta do exército americano era a chamada 23º quartel-general das Tropas Especiais, também conhecida como Exército Fantasma. Em 2015, Rick Beyer e Elizabeth Sayles, lançaram o livro The Ghost Army of World War II (2015; O Exército Fantasma da 2ª Guerra Mundial, em tradução livre), com uma pesquisa histórica onde mapearam as formas que essa unidade despistava inimigos. Coisas como:
- Veículos infláveis como tanques e jipes militares
- Flashes usados para simular tiros
- Caixas de som potentes reproduzindo barulhos de movimentação de tanques, de escavadeiras e caminhões, montagem de pontes flutuantes.
- Envio de mensagens falsas
- Tintas e pincéis para mudar o nome e a logo nos caminhões, simulando veículos diferentes em um só
- Agulha e linha pra costurar e retirar símbolos de diferentes unidades nas fardas. Botavam um símbolo e iam interagir com os moradores locais, Provocavam confusão no bar para chamar atenção. Depois, as mesmas pessoas iam a outras comunidades com símbolos diferentes nas fardas.
- Soldados se passavam por generais, costurando estrelas nas suas fardas, para dar credibilidade ao exército fantasma.
A história permaneceu como confidencial por muito tempo. Segundo a ABC News, 1.300 norte-americanos formavam o grupo, entre eles engenheiros de som, locutores de rádios, publicitários, artistas e atores. As armas que tinham em mãos eram roteiros, figurinos e efeitos sonoros.
Em 21 de abril de 2024, os EUA homenagearam três soldados que participaram dessa empreitada, com a entrega da Medalha de Ouro do Congresso dos Estados Unidos. Seymour Nussenbaum e Bernard Bluestein, ambos com 100 anos, e John Christmas, com 99, representaram o Exército Fantasma, que atuou em 1945, e estima-se que tenha poupado a vida de mais de 10 mil soldados.
Heroína mulher
Mas nem só de fatos históricos e de estratégias de marketing, se faz O Buraco da Agulha. A graça mesmo é quando todo essa rede de intrigas encontra a vida de ingleses normais, adultos tentando se realizar, um casal descobrindo como superar traumas, como Lucy e David. O núcleo romance se misturando aos atores da guerra entrega romance, frustração e suspense do jeito que a gente gosta.
Há que se destacar a personagem Lucy, que começa o livro como uma mulher do tipo “doida pra casar” e termina como a verdadeira heroína inglesa da trama toda. Algo comum hoje em dia, mas não em 1979, no lançamento do livro. O próprio Ken Follet escreve no seu prefácio da edição atualizada como ainda se sente orgulhoso de ter escrito essa história. Algo que, como humilde leitora, só tenho a reforçar, pois coloco ele entre os 5 melhores que li do gênero suspense/investigação. Tem ritmo e mistura os elementos de um jeito que fica difícil parar de ler: 10/10.
Agora é ver qual próximo livro do autor britânico que eu vou ler. Recomenda algum?
FONTES
- Matéria na BBC: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42791949
- Matéria UOL: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2024/03/25/conheca-o-exercito-fantasma-que-enganou-hitler-e-sera-homenageado-nos-eua.htm
- Fotos da 2ª Guerra Mundial: https://pt.wikipedia.org/wiki/Segunda_Guerra_Mundial
- Matéria na VEJA: https://veja.abril.com.br/comportamento/ken-follett-o-fato-surpreendente-chamado-liberdade/#google_vignette
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