Bradbury e o que não pode acontecer
Por Márcia Lira em
Por Diogo Monteiro
Ninguém me dava medo (ou aquele estranhamento, aquele incômodo, que precede o medo em milésimos de segundo) de uma maneira tão honesta quanto Ray Bradbury. Seu sistema era simples. Ele estabelecia a mais confortável e familiar das situações e depois começava a despetalar a sua normalidade, camada por camada, até que o mundo ficasse de cabeça para baixo, pendurado sobre o abismo. Aquele abismo que eu não canso nem nunca vou cansar de revisitar.
Seu cenário ideal era o subúrbio. O subúrbio americano de propaganda de waffles dos anos 50, aquela comunidade pacata, perfeitinha, sem cercas, de gramados verdes, onde todos se conhecem, onde o ser humano (ou o americano de classe média) estava salvaguardado de todas as ameaças do frenético e caótico mundo lá fora. Uma velha senhora viúva assolada pelo som de pequenos passos no sótão, que podem ou não ser de ratos; uma solteirona voltando para casa de uma sessão noturna de cinema, flertando com a possibilidade de estar sendo seguida por um assassino que não se vê; crianças que brincam no quintal, preparando uma invasão alienígena.
Eu aprendi a gostar dele guiado pela mão do medo. Mas era mais que isso. Bradbury ficou conhecido como um dos grandes popularizadores da Ficção Científica. O que é irônico, porque ele mesmo chegou a afirmar que escrevia fantasia e que criara apenas um livro de FC na vida: Fahrenheit 451. “Fantasias são coisas que não podem acontecer. A ficção científica é sobre coisas que podem”, costumava dizer.
Fahrenheit 451 ficou conhecido como um livro sobre o totalitarismo, a censura e a ameaça ao livre pensamento, com sua história sobre uma sociedade onde os bombeiros deixaram de apagar incêndios para trabalhar como incineradores de livros. O que é irônico, porque, na verdade, Bradbury estava mais interessado em fazer uma alegoria de como a televisão e outras mídias destruíam o hábito da leitura. Ingênuo, talvez, mas não tão apartado assim da realidade.
As Crônicas Marcianas não eram ficção científica. Eram somente um jeito de dar vazão a uma fantasia que não cabia situada na Terra. Bradbury levou seu subúrbio para Marte e lá continuou desmontando-o.
Mas, para além da fantasia, da ficção científica ou de uma pitada descuidada de engajamento político, Ray Bradbury sabia de mais uma coisa ou outra. Sabia que há na fantasia uma dose de poesia, e uma a mais de melancolia. Melancolia, porque quem escreve ou lê sobre “o que não pode acontecer” sabe e se recente das fronteiras desse mundo. Sabe que o homem é melhor e maior do que a sua realidade, e dela prisioneiro. Sabe que a poesia, o alumbramento e o medo que a gente carrega não cabem nesta Terra, e dela transbordam.
Bradbury era isso. Era a fantasia transbordando do copo raso do mundo.
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Vocês não sabem o quanto fico feliz de ter um texto de Diogo aqui, o Menos um na estante sobe aí uns degraus. Só porque Diogo é um dos caras mais inteligentes que eu conheço e dos que mais entende de literatura, pessoa da melhor qualidade, amigo e casado com uma grande amiga. Sem esquecer que será um grande escritor, assim que se deixar ser lido (dá pra sentir o clima aqui no NotaPE). Fazia tempo que eu enchia o saco por uma contribuição dele no humilde bloguinho, e de repente ele se ofereceu pra escrever esse texto lindo, no triste 5 de junho da morte de Bradbury, que tinha 91 anos.
Foto de Ray Bradbury autografada pelo próprio, de Alan Light, em 1975.
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