O Estrangeiro: apatia e julgamento social em um livro para encher a cabeça de perguntas
Por Márcia Lira em
Você sabe que a vida é cheia de surpresas quando decide fazer uma releitura de um livro que odiou e acaba descobrindo um livro incrível. Foi o que aconteceu comigo e O Estrangeiro, do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960).
A primeira leitura foi em conjunto com amigas de um clube do livro que rolou durante a faculdade de Jornalismo. Faz é tempo, mais de 15 anos. A segunda, há alguns meses, também foi pauta do clube do livro da Paula, do Quero Morar Numa Livraria.
Primeiro eu vou contar o motivo do meu abuso do livro na primeira vez: o Mersault. É o personagem principal, que sofre de uma apatia extrema. Quer dizer, não sei se ele chega a sofrer. A gente que sofre por ele.
O cara é num nível de que a mulher pergunta se ele quer casar com ela e ele responde: “Tanto faz.”
“Hoje a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames.”
– Primeira frase de O Estrangeiro.
Segunda chance
Em vários momentos, fiquei esperando “algo acontecer” e a frustração foi grande na época. Só que o livro inspirou músicas, filmes, outros livros, e muitos fãs, passei a achar que ele merecia uma segunda chance.
Na segunda leitura, eu já conhecia o Mersault e pude tirar da minha experiência de leitura o estranhamento sobre a falta de reação dele diante da vida.
Comecei a ver toda a crítica que aquela postura esconde, consegui digerir o livro finalmente e entender a comoção que ele costuma gerar.
O que é ser livre? Quais é sua real liberdade de escolha na vida em sociedade? Qual o limite entre um indivíduo ter tranquilidade diante do mundo e ser apático, e até irresponsável? São alguns dos questionamentos que surgem na leitura.
O livro é um clássico lançado em 1942, a obra mais famosa do francês Albert Camus. Um best seller traduzido para mais de 40 idiomas. Faz parte do ciclo do absurdo do autor, que inclui ainda o ensaio O Mito de Sísifo e a peça de teatro Calígula.
O absurdo em questão é a falta de sentido da vida, considerada de um ponto de vista em que Deus não existe. Se a vida não tem um porquê maior, o que importa é existir e curtir despretensiosamente um dia após o outro, sem grandes rompantes.
Camus é considerado um dos nomes do Existencialismo, que dizia que o ser humano é o responsável por atribuir significado à sua vida. Com ele, estão outros filósofos como Fiódor Dostoiévski, Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir.
“Quando nos vestimos na praia, Marie olhava-me com olhos brilhantes. Beijei-a. A partir desse momento, não falamos mais. Apertei-a contra mim, e tivemos pressa de encontrar um ônibus, de voltar, de ir para a minha casa e de nos atirarmos na minha cama. Tinha deixado a janela aberta, e era bom sentir a noite de verão escorrer por nossos corpos bronzeados.”
– O Estrangeiro, de Albert Camus
Antes e depois
A narrativa tem duas fases muito marcadas. Na primeira, somos apresentados à Mersault de uma forma até um pouco chocante, observando sua falta de reação ao enterro da própria mãe. Uma das primeiras frases de livros mais intrigantes da literatura.
Depois acompanhamos um pouco do seu dia a dia. O que eu mais gostei na primeira fase é que apesar de eu ter uma vida muito diferente da do personagem, eu me peguei em vários momentos refletindo sobre como eu reagiria a certas situações que ele vive.
A filosofia deve explicar isso. Colocar um personagem que reage de forma atípica às situações do dia a dia faz você pensar em como deveria ser a sua própria.
E aí acontece um fato marcante. E tem uma fase sobre um julgamento.
O julgamento
“Mesmo no banco dos réus, é sempre interessante ouvir falar de si mesmo.”
– O Estrangeiro, Albert Camus
Na segunda fase, o livro me fez refletir sobre as nossas atitudes enquanto sociedade. Como funcionam na realidade os nossos gatilhos para julgar uma pessoa culpada ou inocente? Como fazemos isso de forma coletiva?
Quanto do modo como a pessoa vive, se veste, o que fez no passado influencia o julgamento de um ato específico? Camus descortina uma situação extrema para jogar na nossa cara o quanto a aplicação da Justiça é algo questionável e com muitas nuances.
Uma coisa impressionante em Camus é a fluidez no texto. Como é possível escrever tão simples e levantar perguntas tão profundas? Talvez até isso tenha contribuído para minha impressão de ‘um livro sobre nada’, na primeira leitura.
Uma coisa importante é a presença do sol no livro, que se torna quase um personagem, um ser vivo que influencia as nossas decisões.
Uma obra referência
Agora eu sinto que é um livro que posso reler 5x e encontrar novas ideias dentro dele em cada leitura.
O lugar de clássico está garantido para O Estrangeiro, que foi publicado em 1942 mas está incrivelmente atual.
Ao abordar a apatia extrema, o livro nos deixa desconfortáveis sobre o nosso papel diante da política e das atrocidades que vemos no dia a dia. E o problema do julgamento social não poderia ser melhor atualizado em tempos de felicidade líquida nas redes sociais.
No cinema, o romance inspirou o filme Lo Straniero (1967), dirigido por Luchino Visconti e Yazgi (2001), dirigido por Zeki Demirkubuz. Ele também inspirou o filme dos Irmãos Coen The Man Who Wasn’t There.
Na música popular, inspirou a canção do The Cure, Killing an Arab. Também influenciou a canção A Revolta dos Dândis I, do disco A Revolta dos Dândis, da banda Engenheiros do Hawaii.
Há rumores, não confirmados por seus autores, de que tenha inspirado também a canção Bohemian Rhapsody, do Queen. Chico Buarque também enaltece o romance na música As Caravanas, que tem a frase “a culpa deve ser do Sol”, dita por Meursault durante seu julgamento.
Eu olho pra trás nessa leitura e penso: quantas coisas diferentes eu senti desde que comecei a acompanhar essa história. Será que o Camus me manipulou de propósito, para no fim deixar tudo ainda mais desconfortável?
Posso dizer que esperei encontrar um livro sobre uma pessoa que não se encaixa nos padrões – e até encontrei . Mas me deparei com uma narrativa que me fez repensar algumas certezas pessoais e em sociedade também. Recomendo demais a leitura.
Veja mais resenhas de livros aqui no #menos1naestante.
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O Estrangeiro
Albert Camus
(veja na Amazon: https://amzn.to/2WtmqfX)
Editora: Record
Páginas: 128
ISBN: 978-85-7164-849-4
Nota: 4/5
Um livro para: filosofar, ficar cheia de perguntas na cabeça
3 comentários
AUTOR
Márcia Lira
Márcia Lira. Jornalista. Social Media. Especialização em Jornalismo Cultural. Fundadora do Menos1naestante há 14 anos. E-mail: marcialira@gmail.com.
Nunca mais esqueci a sensação que tive quando terminei a leitura desse livro. E também não consigo não julgar a apatia pela vida, pela sua própria vida, da qual a personagem tinha. É um baita de um clássico que nos sacode inteira por dentro e nos faz repensar e repensar sem chegar a uma conclusão que nos convença, pois caímos no ponto do qual você coloca aqui: “Como funcionam na realidade os nossos gatilhos para julgar uma pessoa culpada ou inocente? Como fazemos isso de forma coletiva?”
[…] (Relendo esse trecho de resignação, fiquei pensando nas semelhanças que o personagem tem com o protagonista de O Estrangeiro, de Albert Camus). […]